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Por: Ciro Fachim Sgavioli.
O clima de constante ebulição política que nosso País atravessa, traz consigo, infelizmente, uma enxurrada de informações falsas e ideias as quais, nem de longe, representam a realidade do sistema legal e judicial de países considerados paradigmas no tocante às garantias e direitos trabalhistas.
Não raro deparamo-nos com um caudaloso mar de “fake news”, ilações e adjetivações desairosas sobre o sistema legal do Brasil que cuida das relações de trabalho. Sempre utilizando como base a “simplicidade”da legislação norte-americana.
Com muita facilidade e sem qualquer tipo de embasamento ou pesquisa, inúmeros sofismas são transformados em verdadeiros tratados sobre o tema. E os exemplos são os mais diversos: acabar com a Justiça do Trabalho para acabar com as ações trabalhistas, assim como nos EUA; que nos Estados Unidos não existem Reclamações Trabalhistas; lá não existe CLT, tampouco legislação ou políticas afetas às relações entre empregador e empregado; não existem litígios trabalhistas nos EUA, dentre outros.
Será que é assim mesmo que as coisas funcionam por lá?
Seria a nossa Justiça do Trabalho uma “Jabuticaba”?
É disso que cuidaremos neste breve texto.
Com poucos meses de pesquisa, a primeira assertiva a ser escrita nestas linhas é: o mínimo de conhecimento da língua inglesa, ou pelo menos a curiosidade em pesquisar elementos do sistema legal norte americano, são requisitos mínimos, para se fazer um comparativo, entre a realidade do sistema jurisdicional de ambos os países.
A segunda assertiva, por sua vez, é ainda mais simples: muito do que o Brasil possui, no tocante à legislação e métodos de resolução de litígios, foi “trazido” de outros países. Expressões tais como: “sham litigation”, “cram down” , “leasing”, “burden of proof”, “compliance”, não surgiram do vácuo. Tais institutos ou verbetes foram “importados” e adaptados a fim de se amoldarem ao nosso cotidiano jurídico.
Neste trilho, mas sem a intenção de realizar maiores divagações, direitos basilares de um Estado Democrático, como o de não produzir provas contra si mesmo, já foram utilizados nos EUA, por exemplo, no processo contra o Mafioso Arnold Rothstein, acusado de chefiar um esquema de jogos de azar, apostas ilegais e de manipular resultados na Major Baseball League de 1919, processo este, o qual culminou com a sua absolvição por falta de provas, porém, com o banimento do esporte de oito atletas profissionais da modalidade.
Dispa-se, portanto, de mitos construídos aos trancos e barrancos, tais como o de que “só existe Justiça do Trabalho no Brasil” ou “as leis dos EUA se resumem a 3 páginas, um dia chegaremos lá”, caso contrário, será muito difícil para você, caro leitor, analisar pontos fundamentais do presente texto.
SÓ EXISTE JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL?
Inicialmente, ao contrário do que muitos imaginam, a Justiça do Trabalho, em separada da comum, também existe em países como a Bélgica (“Arbeidsrechtbank”), Dinamarca (“Arbejdsretten”), Hong Kong (“The Labour Tribunal”), Inglaterra (“Employments Tribunals”), Alemanha (“Bundesarbeitsgericht”), Nova Zelândia (“Employment Court”), dentre muitos outros.
Nos Estados Unidos, por sua vez, a ampla competência para julgar feitos trabalhistas é conferida aos Magistrados da justiça comum, uma vez que a legislação assim o determina.
E a legislação esta, a qual está longe de ser exígua, no tocante aos direitos trabalhistas.
COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO DO TRABALHO
Ao contrário do Brasil, onde compete privativamente à União legislar sobre Direito do Trabalho, (art 22, inciso II da CF/88), nos EUA, esta competência é distribuída tanto para os estados, quanto para o governo federal.
Partindo desta premissa, não é nenhum mistério que as leis que tratam da matéria NÃO são uniformes em todo o País.
A Jurisprudência comprova com robustez, que os estados não fogem desta responsabilidade, de sorte que uma empresa que possua sucursais em diversos estados, deverá observar aquilo que cada ente federativo determina no tocante às relações de emprego.
LEGISLAÇÃO NO ÂMBITO FEDERAL
No âmbito federal, a legislação trabalhista igualmente está longe de ser simplória.
Por óbvio, não serão mencionadas todas as leis federais que regem a matéria, mas apenas algumas as quais merecem destaque. Uma delas é a “Fair Labor Standards Act”.
FAIR LABOR STANDARDS ACT (FLSA)
Edito de 1938, sancionado no governo de Roosevelt durante o “New Deal”, define, como o próprio nome diz, direitos aos trabalhadores tais como salário mínimo (“minimum wage”), horas extras (“overtime pay”) para quem labora mais de 40 horas semanais, além de regular o trabalho infantil e as condições mínimas de trabalho.
E não demorou muito para que as primeiras alterações surgissem na supramencionada lei.
Merece destaque o caso Anderson v Mt. Clemens Pottery Co., de 1946, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a qual decidira que serviços preparatórios ou preliminares (antes do trabalhador iniciar seu labor principal), os quais eram supervisionados pelo empregador e que lhe beneficiavam, mereciam ser computados como hora de trabalho e por consequência, remunerados.
Em 1949, a FLSA sofreu uma nova alteração, principalmente por conta do período da 2ª Guerra Mundial, a qual inflacionou os salários acima dos parâmetros especificados na referida lei. Como consequência, foi editada uma emenda (“Amendment”) para limitar o alcance da lei para trabalhadores da área do comércio, majorando, pois, o valor do salário mínimo.
Desde então, várias alterações foram realizadas na lei, destacando-se a “Equal Pay Act”.
EQUAL PAY ACT – (1963)
Esta emenda foi aprovada a fim de coibir a diferença nos salários baseando-se no gênero. Tal medida teve seu alcance ampliado em nova emenda, realizada em 1972 a “Education Amendments”..
Desde então, nas décadas subsequentes, a Fair Labor Standards Act sofrera inúmeras alterações, bem como propostas de alteração, sendo que a mais recente tentativa ocorrera em 2016.
Muitas outras leis foram criadas, tais como a “Civil Rights Act” de 1964, o “Pregnancy Dicrimination Act” de 1978, o “Americans with Disabilities Act”, de 1990, o “Genetic Information Non-Discrimination Act” de 2008 diplomas legais os quais, inexoravelmente ampliaram a gama de direitos do trabalhador, fazendo cair por terra afirmações absurdas sobre uma suposta ausência de direitos do obreiro nos Estados Unidos da América.
FONTES DO DIREITO DO TRABALHO NORTE AMERICANO
A fonte primária do Direito Anglo-Saxão (“Commom Law”), são os milhares de precedentes jurisprudenciais os quais podem servir de parâmetro para uma decisão no processo do trabalho, além da legislação estadual e federal esparsa, bem como doutrina (livros de juristas os quais comentam a legislação).
CASO LEMMERMAN V. AT WILLIAMS OIL CO. (1986)
Uma dúvida a qual poderá surgir, principalmente para quem se interessa pelo sistema de Justiça dos Estados Unidos, reside no enquadramento da figura do empregado. Quem pode ser considerado um empregado?
Como dito, tanto a legislação, quanto a Jurisprudência podem servir de alicerce para se aferir se determinado indivíduo é ou não empregado.
Para melhor ilustrar as nuances dos ricos precedentes do Judiciário norte-americano, insta mencionar o caso “Lemmerman v. AT Williams Oil Co.”
Chegou até a Suprema Corte da Carolina do Norte e foi julgado tendo como fundamento a “Workers Compensation Act”.
Shane Tucker, com 8 anos de idade, acompanhava sua mãe no trabalho em uma loja de conveniência em Greensboro, e lá realizava diversos serviços, tais como estocar cigarros, cuidar do lixo, colocar garrafas no refrigerador, auferindo do gerente, U$ 1.00 por dia.
Em 1982, Shane tropeçou na calçada do estabelecimento e cortou sua mão. Shane e sua genitora, então processaram a loja de conveniências por negligência.
O tribunal de 1ª Instância considerou Shane como um empregado.
O caso prosseguiu e chegou à Corte de Apelações da Carolina do Norte, que confirmou a decisão. As opiniões dos Magistrados, porém, divergiram. Shane e sua mãe, recorreram novamente.
A controvérsia residia principalmente, se o menor e seus representantes legais poderiam processar o Réu perante as leis comuns, ou se Shane era empregado e estaria enquadrado na “Workers Compensation Act”.
A Suprema Corte então decidiu:
“Ao propor essa ação de direito comum contra o réu, a criança queixosa desmentiu o contrato anterior entre as partes e renunciou a quaisquer direitos que ele pudesse ter sob o Ato de Compensação dos Trabalhadores em virtude do contrato. Ao negar o contrato, ele optou por buscar seu remédio de direito comum. Que Shane evitou o contrato instituindo a ação não é de momento algum; é tão eficaz quanto escrever uma carta de desconfiança para o réu antes de iniciar a ação. A ação e as provas e contenções pelo autor Shane notificou claramente o réu que o contrato foi evitado. Após o desrespeito do contrato por parte da criança, ela foi anulada ab initio e o réu não podia confiar em um contrato inexistente para derrotar a ação da criança queixosa. Pelas razões acima expostas, eu voto para permitir que o requerente infantil prossiga sua ação de direito comum contra o réu”.
DAS AGÊNCIAS
Antes de adentrarmos no âmbito das lides trabalhistas, necessário afirmar que os EUA, assim como o Brasil, tentam constantemente incutir a necessidade de conciliar, quando o assunto envolve conflitos de interesses a serem resolvidos na Justiça.
Na esfera trabalhista, ocorre o mesmo.
Existem agências as quais servem para receber reclamações e queixas de trabalhadores, a fim de que estas sejam analisadas e consequentemente, se necessário, levadas ao Poder Judiciário.
Occupational Safety and Health Administration (OSHA)
Criada durante o Governo de Richard Nixon, na década de 1970, como o próprio nome diz, trata-se de uma Agência derivada do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, a qual visa resguardar condições dignas de segurança no trabalho, bem como oportunizando aos empregados, espaço para apresentarem queixas, reclamações, requerer inspeções no local de trabalho, bem como é um canal direto com o empregador, caso ocorra alguma fatalidade com seus funcionários.
Equal Employment Opportunity Commission (EEOC)
A EEOC é um órgão federal que visa coibir ações discriminatórias e assédio (“harassment”) no ambiente de trabalho em virtude de orientação sexual, etnia, gênero e religião.
Quando ocorre uma violação no ambiente de trabalho, o empregado deve obrigatoriamente apresentar uma queixa perante a agência, a qual notificará a empresa. A presença do advogado é opcional nesta fase, apenas se tornando obrigatória, caso a parte já tenha constituído um.
O empregador receberá uma notificação a qual lhe fará um convite para tentar mediar o conflito. O suposto infrator possui o direito de se negar a realizar a mediação.
Se a queixa do trabalhador for procedente, o mesmo recebe uma carta a qual atesta que a vítima está apta a processar seu empregador (“Right to sue letter”), a qual lhe dará o aval para mover um “Lawsuit” contra o seu patrão no prazo máximo de 90 dias.
É obrigatória a apresentação da queixa na EEOC, antes de se buscar o Poder Judiciário, exceto para casos regidos pela “Equal Pay Act” dentre outras exceções.
A bem da verdade, talvez resida aí a grande diferença. Há uma maior fiscalização por parte de Agências como a EEOC, as quais agem como um verdadeiro filtro, a fim de melhor apurar cada caso e evitar assoberbamento do Pode Judiciário.
DOS LITÍGIOS TRABALHISTAS NOS ESTADOS UNIDOS
LABOR CLASS ACTIONS
Mencionemos, antes de prosseguirmos, o fato de que muitas queixas podem ser mediadas nas agências supramencionadas, as quais podem ser perfeitamente mediadas (resolvidas consensualmente) caso as partes queiram. E então, acordos são firmados.
É uma verdadeira falácia afirmarmos que nos EUA não existem Reclamações Trabalhistas ou que são poucas pessoas as quais buscam o Poder Judiciário.
As “Class Actions” ou Ações Coletivas, ilustram de uma forma muito clara tal assertiva. Esta modalidade de ação judicial, é extremamente comum nos EUA, onde várias pessoas, as quais se sentem atingidas ou possuem determinado direito, buscam conjuntamente a Justiça.
De acordo com o site law360.com, as empresas americanas pagaram no ano de 2015 aproximadamente 2,5 bilhões de dólares apenas em acordos judiciais trabalhistas na Justiça Federal relativos a processos coletivos de horas extras (imagine-se o “custo EUA” que isto representa…).
Os Reclamantes (“plaintiffs”), são das mais diferentes categorias profissionais, desde trabalhadores da IBM, até” strippers” as quais pleitearam na Justiça, a devida remuneração de seus direitos laborais.
O site law360, também afirma que a Justiça Federal dos Estados Unidos, registra, anualmente, a entrada de 10 mil novas ações coletivas, as quais versam sobre horas extras.
Em um cálculo simplório, se considerarmos, que nestas ações, envolvem pelo menos 100 Reclamantes, temos que tais ações equivaleriam a, pelo menos 1 milhão de Reclamações Trabalhistas individuais.
Agências de consultoria como a Hiscox afirmam que o risco de uma empresa sofrer um “Employment Lawsuit” nos Estados Unidos, pode variar de 15% (Missouri) a 66% (Novo México).
Nem se alegue, portanto, “que nos EUA existem poucas Reclamações Trabalhistas”.
Ademais, ao contrário do Brasil, a duração de um processo trabalhista nos EUA, é muito menor o que impede que o empregador postergue o adimplemento de seu passivo trabalhista.
Os Magistrados possuem ampla competência para julgar conflitos trabalhistas. Bilhões de dólares em indenizações e custas judiciais são pagas anualmente pelas empresas.
Em 2016, em ação ajuizada na Justiça do Estado de Illinois, a Amazon concordou em pagar 3,7 milhões de dólares aos trabalhadores residentes neste estado, relativamente aos minutos que os trabalhadores gastam em inspeções de segurança ao início e término da jornada de trabalho. Em fevereiro de 2017, a Disney, em acordo homologado na Justiça Federal da Califórnia, pagou 100 milhões de dólares aos seus animadores por formar um cartel com outras empresas do setor a fim de manter os salários daqueles profissionais artificialmente abaixo do valor de mercado.
SOBRE O QUE VERSAM AS AÇÕES TRABALHISTAS NOS EUA?
Nada diferente do que é requerido em Terras Tupiniquins:
Horas extras (“overtime pay”), falta de registro da jornada de trabalho (“work off the clock”), supressão de intervalos (“missed rest and break meals”), horas in itinere (“transportation to and from work site”), divergências quanto à terminação do contrato (“wrongful termination”), danos morais decorrentes de ações discriminatórias e de abuso de poder como assédio moral e sexual, conflitos decorrentes de planos de saúde vinculados ao contrato de trabalho (ERISA), entre outras.
CONCLUSÃO
No fim das contas, comparações descabidas e desdém para com nossa legislação trabalhista, só exibem a imensa ignorância que impera, quando se fala sobre o sistema legal dos Estados Unidos.
A FLSA, como já mencionado, é mais antiga até do que a CLT e foi tão reformulada quanto.
Por óbvio, não houve a menção de muitas outras leis as quais garantem direitos às gestantes, menores, ou até mesmo sobre as leis que versam sobre sindicatos para não tornar ainda mais volumoso, um texto o qual possui a pretensão de tratar e desmistificar, de um modo resumido, o fantasioso – e até ingênuo – argumento de que o cidadão norte-americano, caso seja lesado por seu empregador, não terá a quem recorrer.
Não há motivos para nos esquivarmos de um debate sadio e sem viés político sobre a modernização das leis e melhoramento das instituições de nosso País. Porém, dados e informações verídicas devem sempre servir de embasamento, caso contrário, apenas utilizar-se de falácias, para criticar o sistema jurisdicional brasileiro, o qual é muito parecido com o da Alemanha, por exemplo – vide influência do Código Civil Alemão (BGB), quando da elaboração do Código Civil Brasileiro de 1916 – apenas para ganhar discussões e pontos políticos, em nada adiantará para o aperfeiçoamento constante que o Direito merece.
REFERÊNCIAS
https://www.courtlistener.com/opinion/1340753/lemmermanvat-williams-oil-co/
https://www.jota.info/opiniaoeanalise/artigos/o-mito-da-jabuticabaajustica-do-trabalho-no-mundo-30112017
https://www.jota.info/opiniaoeanalise/artigos/a-reforma-trabalhistaeo-sonho-americano-10062017
https://www.eeoc.gov/employees/charge.cfm
https://www.dol.gov/whd/regs/statutes/FairLaborStandAct.pdf
https://www.hiscox.com/documents/2017-Hiscox-Guide-to-Employee-Lawsuits.pdf